"Romarias ontem e hoje" - Ir. Manuel Oliveira

"Romarias ontem e hoje" - Ir. Manuel Oliveira

"Romarias ontem e hoje"

A tradição, as mudanças, o que são hoje e o que ainda é preciso mudar, para que ocorra verdadeiramente “louvor para Deus” e para que do Céu venha “graças e bem para os homens”.

Intervenção do irmão Manuel Oliveira.

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Romarias ontem e hoje

 

Vou dividir este pequeno trabalho  em duas partes. Na primeira parte faço uma pesquisa a pequenos apontamentos que nos relatam  o modo como  evoluiram as romarias desde o seu aparecimento no século XVI até aos nossos dias. As suas razões, dificuldades, regras, avanços e recuos. Na segunda parte farei uma abordagem pessoal, sem qualquer pretenção, apenas o meu sentir e viver das nossas romarias, aquilo que elas foram, o que são e principalmente o que deverão ser.

 

Primeira Parte

 

Numa pesquisa efectuada no site « TRADIÇÕES AÇORIANAS » encontramos referências às romarias desde o século XVI até ao século XXI. Vou referir apenas as que achei mais relevantes para este trabalho.

 

Século XVI

Encontramos a seguinte nota :

1522-10-22 : Subversão de Vila Franca do Campo (tremor de terra) da ilha de São Miguel, causando o soterramento da maior parte da vila, então capital de São Miguel e provocando a morte a alguns milhares de pessoas. O sismo causou ainda danos e mortes em muitas outras povoações de São Miguel.

O tremor de terra de 1522 deu origem a procissões realizadas todas as quartas-feiras, à noite ou de madrugada na ermida de Nossa Senhora do Rosário construída em memória da catástrofe. A devoção a Nossa Senhora do Rosário é o fundamento principal destas procissões. Alguns anos mais tarde, essas procissões foram realizadas anualmente, durante o dia e ao redor da ilha.

 

Século XVII

1630-09-02 : Tremores de terra e erupção vulcânica das Furnas, ilha de São Miguel que causou danos materiais e humanos. Foi chamado o « Ano da Cinza », pois a nuvem de cinza foi tão densa que foram necessárias tochas durante o dia e em todas as ilhas ficou a vegetação recoberta de cinza.

Durante toda esta crise de tremores de terra (durante todo o mês de Setembro e início de Outubro) foram realizadas várias procissões em toda a ilha.

O Frei Agostinho Monte Alverne, na sua obra Crónicas da Província de S. João Evangelista das Ilhas dos Açores (Vol. II) ao referir-se à erupção vulcânica de 1630 que destruiu as Furnas explica que os ermitas que habitavam na ermida de Nossa Senhora da Consolação no chamado Vale das Furnas foram obrigados a deixar o dito lugar e mudarem-se para a ermida de Nossa Senhora da Conceição, Val de Cabaços, em Água de Pau. Neste contexto, ele fala da existência de uma penitência realizada pelos moradores da ilha, a de correr as casas de Nossa Senhora da ilha a pé e descalços, de dia e de noite. Também indica o número de casas de N. Sra visitadas pelos romeiros, no ano de 1635 visitavam 61 Casas, incluindo a do Val de Cabaços para pernoitar.

 

Século XVIII

1743-09-16 : proibição, por parte da hierarquia eclesiástica, das romarias.

A visita pastoral datada de 16 de Setembro de 1743 à igreja de S. Pedro de Nordeste revela a insistência, por parte da autoridade eclesiástica, da proibição completa das romarias. O texto mostra que, apesar da proibição feita a 1705, os habitantes da ilha continuavam a praticar esta devoção pelo menos até 1743. Provavelmente que esta resistência tenha continuado ao longo dos anos, como aconteceu com outras manifestações (festas do Espírito Santo) e o que leva a sugerir que por esta razão as romarias continuaram a ser realizadas de forma autónoma e popular, fora do contexto religioso, dito oficial e institucionalizado, mas mais próximo da religiosidade popular.

 

Século XIX

1851-1863 : proibição da passagem dos Romeiros em Ponta Delgada

O artigo intitulado “Nota Histórica Os Romeiros” do jornal A Crença publicado em 1926 e redigido pelo padre João José Tavares informa que o governador civil Félix Borges de Medeiros (1851-1863) proibíu a passagem dos Romeiros por Ponta Delgada.

 

Século XX

1929-03-09: retomada da prática Romeiros de São Miguel.

Em 1929, os jornais A Crença e O Autonómico publicam artigos anónimos anunciando a retomada das romarias na ilha. Seria conveniente – no contexto açoriano – saber se todos os ranchos de romeiros obedeceram realmente às proibições. Pelos vistos, parece que não, pois foi possível constatar que ao longo da história destas proibições (séculos XVIII, XIX e XX) houve uma certa resistência e transgressões às leis impostas ; a realização « clandestina » das romarias é um facto bem provável.

 

1956-00-00 : iniciativa de criar um documento escrito que regulamentasse as romarias: “A Regra do Romeiro” Antes de 1956, o conjunto de regras referentes ao funcionamento das romarias e comportamento do romeiro foi transmitido oralmente de geração em geração.

 

1958-01-30 : entrega da Regra intitulada “Como cantam e rezam os Romeiros na Ilha de S. Miguel” ao bispo Dom Manuel Afonso de Carvalho da diocese de Angra.

 

1962-03-25 : Aprovação e publicação do regulamento oficial das romarias: Regulamento dos Romeiros da ilha de São Miguel – Açores

O regulamento oficial, intitulado Regulamento dos Romeiros da ilha de São Miguel – Açores foi revisto e corrigido por Dom Manuel Afonso de Carvalho da diocese de Angra. Ele foi aprovado e publicado no Boletim Eclesiástico dos Açores.

 

1989-01-13 : publicação de uma nova versão do regulamento oficial das romarias: Regulamento dos Romeiros da ilha de São Miguel

Em 1989, aparece uma nova versão, actualizada desta vez pelo Grupo Coordenador das romarias de São Miguel, e aprovada por Dom Aurélio Granada Escudeiro. Este regulamento contém o mesmo título – Regulamento dos Romeiros da Ilha de São Miguel -, a mesma forma e o mesmo número de capítulos que o regulamento precedente (1962). No entanto, algumas modificações foram feitas e acrescentados novos elementos, sobretudo no que diz respeito à preparação religiosa dos romeiros, à composição dos principais membros do rancho ou ainda os deveres do romeiro no após-romaria.

 

Século XXI

Em 2003 é actualizado e publicado o regulamento dos Romeiros de São Miguel. Redigido pelo Grupo Coordenador dos Romeiros de São Miguel e aprovado pelo actual bispo da diocese, Dom António de Sousa Braga, este regulamento é composto por 4 capítulos e 52 artigos. O regulamento apresenta-se em forma de livro intitulado Romeiros de São Miguel Regulamento com um total de 50 páginas. Muito mais extenso do que os regulamentos anteriores, ele aproxima-se consideravelmente, pela sua forma, conteúdo e linguagem técnica, do texto jurídico ; os capítulos estão subdivididos em secções e em subsecções, cada uma delas contendo um ou mais artigos.

 

 

Segunda Parte

 

Depois dos apontamentos acima referidos, podemos concluir que as Romarias de S. Miguel surgiram com o terramoto de 1522 em Vila Franca do Campo, num ato de súplica e pedido de clemência a Deus, por intercessão de Nossa Senhora. Como vimos, as romarias sofreram avanços e recuos, com pribições e restrições motivadas por diversas razões mais ou menos válidas, mais ou menos compreensíveis. A verdade porém é que enfrentando contrariedades, congregando boas vontades e acima de tudo fazendo valer a força da fé que faz persistir e perseverar, elas chegaram aos nossos dias com a força e a expressão que hoje vemos dentro e fora da Igreja.

 

Ontem como hoje, as romarias são demonstração pública de fé. No entanto a evolução que todas as coisas na vida vão sofrendo, também se estenderam às romarias. Se é verdade que antes o valor da fé era igual ao que hoje é, não é menos verdade que a vivência dessa mesma fé é hoje muito mais esclarecida e exigente, e é vivida, ou deveria ser vivida duma forma mais dinâmica, consciente, consistente, participativa e de forma continuada. Não apenas na semana de peregrinação mas principalmente nas outras semanas do ano no contacto permanente com aqueles que nos rodeiam, a começar pela nossa família.

Ser romeiro não é uma moda! É um modo de vida, uma forma de ser e de estar na vida de todos os dias, atento ao que se passa à sua volta, sempre pronto a auxiliar e a dar o verdadeiro testemunho do amor de Cristo.

Ser romeiro não é fazer uma semana de turismo de natureza, caminhando por trilhos e estradas com paisagens de beleza ímpar, muitas vezes acompanhados e importunados por repórteres que perturbam a caminhada e cujo interesse muitas vezes é apenas o interesse económico subjacente. Não estamos contra aqueles que de boa fé pretendem divulgar o testemunho dos romeiros captando imagens ou solicitando depoimentos, façam-no no entanto em locais e de forma a não interferir no recolhimento, no silêncio e na meditação que está inerente à condição do romeiro.

Já nos interrogamos qual o nosso papel como romeiros na nossa comunidade?

Já nos demos conta da responsabilidade do nosso testemunho como cristãos ao longo de todo o ano. Da tão necessária coerência entre a romaria vivida na semana da caminhada e a nossa postura no desempenho das nossas atribuições diárias nos locais em que nos movimentamos?

Ontem como hoje, ser romeiro é responder a um chamamento. Sou chamado por que Deus precisa de mim para dar testemunho na minha comunidade. Se assim é, o que me leva muitas vezes a incorporar-me em outro rancho de romeiros que não o da minha paróquia? Poderá haver certamente motivo para um ou outro irmão não poder incorporar-se no rancho da sua paróquia num determinado ano (razões profissionais, familiares ou de saúde que obriguem a escolher outra semana de caminha). Mas deverão ser situações pontuais. A romaria não é um campeonato desportivo em que as equipas (entenda-se os ranchos) se vão reforçar em outros mercados (aqui, outras paróquias) contratando jogadores (romeiros) para tornar a sua equipa mais forte com mais elementos e assim no final ser o primeiro classificado. Na romaria não há campeões, há pecadores, não há grandes nem pequenos, há cristãos. O campeão é Cristo e o clube é o rancho da minha paróquia com muitos ou poucos irmãos, não importa. Com aqueles que foram chamados e responderam ao chamamento. Portanto, a norma é que o meu rancho de romeiros seja o da minha paróquia onde estou inserido como cristão e onde tenho que fazer a minha caminhada de fé ao longo de todo o ano.

A vivência da semana da romaria e o seu valor espiritual estão muito acima de qualquer interesse ou mesquinhez humana. O seu valor não depende deste ou daquele responsável, da maior ou menor permissividade sobre os comportamentos dentro do rancho, ao longo da caminhada. Depende sim do Espírito Santo de Deus que, por intercessão de Maria Santíssima, naquela semana, derrama sobre todos nós uma chuva de graças que nos leva cada vez mais a procurar e descobrir os talentos que possuímos para pô-los a render ao serviço dos irmãos no dia-a-dia da nossa vida.

Ontem como hoje, há regras a cumprir. Mas se antes muitas delas ficavam à responsabilidade do mestre do rancho, duma forma singular sem conjugação com os outros ranchos, provocando diferenças de atitudes de rancho para rancho, hoje, tudo é bem diferente.

Se antes os romeiros eram muitas vezes ignorados ou mal aceites por parte da igreja hierárquica, havendo párocos que chegavam a proibir as romarias de entrar na igreja da sua paróquia, hoje tudo é diferente. Os Romeiros de São Miguel passaram a fazer parte dos Movimentos da Igreja, com os seus estatutos em boa hora aprovados. Temos na maioria do clero da nossa diocese os nossos maiores aliados, muitos deles incorporando-se também nos nossos ranchos, como irmãos romeiros. A disponibilidade que demonstram indo ao nosso encontro diariamente para a celebração da santa eucaristia. O carinho que nos dedicam com os seus ensinamentos e as suas reflexões quer nas reuniões preparatórias quer na semana da caminhada. Este trabalho e esta dedicação dos nossos padres são um alicerce espiritual da nossa romaria cujo valor em favor dos romeiros e dos cristãos, só Deus pode e sabe medir.

Os estatutos trouxeram a maturidade ao nosso movimento. Vieram trazer a uniformização de procedimentos tão necessária à orientação dos ranchos. O papel do Grupo Coordenador tem sido de crucial importância para o bom entendimento entre todos. Para a sensibilização dos responsáveis no desempenho das suas funções no rancho. Para o incentivo a cumprir aquilo que nos pede o estatuto na visita às casinhas de Nossa Senhora, Ela que também foi peregrina e que é a medianeira de todas as graças. Para uma correcta planificação das dormidas dos diferentes ranchos ao longo das semanas da Quaresma.

Também o aparecimento dos Grupos Paroquiais de Romeiros previstos nos estatutos veio trazer um maior envolvimento dos romeiros na vida das suas paróquias, nomeadamente em iniciativas caritativas ou animações litúrgicas. O Grupo Paroquial de Romeiros é a extensão natural da romaria, é aí que devemos por em prática no dia-a-dia todo o nosso viver cristão tão bem vivido na semana da caminhada.

Ontem, como hoje nem tudo foi ou é tão bom que não possa ser melhor. Cabe-nos a nós hoje a responsabilidade de fazer mais e melhor. Com sacrifício, renuncia, sofrimento, oração? Certamente com tudo isto. Abdicando do conforto do lar para caminhar uma semana noite e dia, abstendo-se de exageros na comida ou na bebida. Comportando-se com dignidade e humildade na casa dos irmãos que nos recebem. Usando de caridade no tratamento dos irmãos ao longo da caminhada. Como peregrinos que somos, orando e visitando o máximo possível de igrejas e ermidas dedicadas a Nossa Senhora. Como penitência naquela semana, abdicar de alguns hábitos como por exemplo reduzindo o fumo ou o consumo de álcool (este principalmente, pelas alterações de comportamento que pode provocar e com isso interferir negativamente na harmonia que deve reinar no rancho). Em suma ter uma atitude cristã e de verdadeiro penitente. Estas e outras atitudes levam-nos a melhor descobrir e viver a beleza espiritual da romaria. O amor, a partilha, a oração, são as nossas armas para desbravar o caminho que nos faz descobrir Cristo. É na escassez e não na abundância, é no cansaço e não na ociosidade, é na fraqueza e não no vigor físico, é na calma e não na agitação, é no silêncio e não na desordem que nos podemos encontrar connosco próprios e encontrar com Cristo. É nas situações de vida mais frágeis que estamos mais despertos para as pequenas coisas. É assim que estamos mais atentos aos pequenos sinais de Deus. É aí que vamos encontrar Cristo.

Ontem como hoje o nosso caminho é de busca, de aperfeiçoamento. Queiramos estar ao serviço. Estar disponíveis. Queiramos trabalhar na messe. Com persistência e atitude positiva. Se hoje somos melhores que ontem, amanhã poderemos ser certamente melhores do que hoje.

Todos nós que de alguma forma temos responsabilidades nos nossos ranchos de romeiros somos responsáveis por encontrar a forma de melhorar, aperfeiçoar, e levar a cabo esta missão de cristianizar todos aqueles que são chamados a fazer a caminhada. Fazer deles cristãos activos no dia-a-dia da vida da sua paróquia, testemunhando com actos o seu amor aos irmãos, em especial aos mais necessitados.

Cristo precisa de nós todos os dias, todas as horas. Mas nós também necessitamos dele a todo o momento e por isso não nos pode bastar uma semana de oração. Aquela semana de caminhada deve ser encarada como uma paragem, um balanço de vida, um recarregar de baterias para o desempenho das nossas tarefas o resto do ano. O espírito de romeiro tem que permanecer em nós sempre. Não se compreende um romeiro que não participa na eucaristia ao domingo. Que não se vá alimentar de Cristo que é a sua força. Será que depois da romaria se esqueceu do irmão mais velho que é Cristo? Se ainda não o fizemos, temos de mudar a nossa atitude. Sejamos activos e coerentes. Que o nosso exemplo fale por si. Cristãos de corpo e alma a tempo inteiro.

Ontem como hoje, que as nossas romarias sejam sinal de fé de esperança e de amor.

Seja Louvado Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Ir. Manuel Oliveira

2011.12.04